Nakba. Aníbal Alves
zunzuns acerca dos azares da guerra, isto soa-me ao fim da nossa clausura e é tempo de pensar um plano de sobrevivência para não desenterrar o passado.
Abramowicz olhou sério para o companheiro e murmurou com gravidade:
— Sim, os boches tinham um mas estão à beira de naufragar. Nós temos que saber ultrapassar isso com vantagem!
Estes kapos eram tratados como soldados alemães pelos superiores, em virtude da sua baixeza de caráter e do seu servilismo. Chegavam ao ponto de executarem as tarefas mais sujas e degradantes do género humano: aqueles serviços que até os mais rudes soldados tinham pejo em realizar nos condenados aos campos de trabalho forçado. O prisioneiro B76324, agora merecedor de ampla confiança do comandante do campo, antes tinha sido um dos bonifrates ao serviço do Dr. Mengele, mais conhecido por anjo da morte. Este tratamento de favor os tornava respeitados até pelos soldados de serviço naquele campo, o que não evitava os seus pensamentos na mais restrita intimidade: o ódio que latia no seu subconsciente por aqueles porcos que os tinham desumanizado. Era por isso que lançavam figas e palavras de anátema aos oficiais das SS que se serviam deles. Estes dois judeus, odiados até pelos irmãos de raça, sabiam bem que a natureza do homem não é boa nem piedosa. Nem é justa, porque cada ser luta por sobreviver e eles tinham vencido: optaram pela lei do mais forte. Moralmente eram uns farrapos, porque essa conduta impõe quase sempre o sacrifício do lado bom que está no ser humano, esse instinto de abnegação em favor dos semelhantes mais fracos. Eles preferiram adotar a máscara da conveniência para manter os privilégios. Eram como a maioria dos católicos que escolhem a pompa do mundo, mas servem-se da cruz para camuflar a conduta ignóbil. Sentiam-se satisfeitos por terem sobrevivido ao tormento de Auschwitz, mas não conseguiam evitar a acusação da sua alma — o mal que tinham feito já não podia ser superado e o remorso estava ligado às canalhices do passado. Esse sentimento torna-se mais latente e cruel à medida que o tempo passa. O remorso é implacável, exige expiação e impunha-lhes um outro modo de agir que eles nem conheciam.
Era hora de almoço, as sirenes da fábrica de armamento e explosivos, assim como a petroquímica de Auschwitz II, já tinham soado para anunciar a pausa do meio-dia e o maldito comboio proveniente da Hungria sem aparecer. Esta era a última leva de prisioneiros para Auschwitz e todos os outros campos associados. Aquele carregamento era uma exceção muito afetada por força das circunstâncias. Era necessária mais mão de obra para o desmantelamento que tinha sido ordenado pelas altas patentes, em virtude da aproximação do exército russo; as instalações fabris não podiam de maneira alguma cair em mãos inimigas, mormente a importante indústria química de Auschwitz III; havia que acelerar a desmontagem das instalações e aqueles ciganos iriam ajudar à concretização desse plano.
Os soldados já tinham tomado posições ao longo do cais e da via férrea, cujo acesso era vedado por cavalos de arame farpado e cercas de rede eletrificada. Também os prisioneiros que ajudariam os recém chegados a descer e a limpar os vagões já eram enquadrados pelos seus kapos, que com as braçadeiras berrantes, castanhas para os polacos e amarelas para os judeus, se tornavam bem notados para os soldados que, de armas aperradas, aguardavam o comboio. Até o tenente, que comandava aquela unidade de receção, passeava, soberbo da sua autoridade, sobre a neve que atapetava o cais de madeira e provava o seu nervosismo com as batidas do pingalim sobre o cano das botas polidas de negro.
Um estridente silvo se fez ouvir no silêncio gelado daquele soturno ambiente de carris, sinistras vedações eriçadas de farpas e homens de rostos tétricos. Lá ao fundo, a quebrar a linha do horizonte, o olho incandescente apontava ao longo da via e tornava visível o círculo negro que, qual visão fantasmagórica, sugestionava o monstro de ferro que se insinuava na brancura do trajeto. Era envolto numa neblina de vapor e cuspia fuligem incandescente pela bocarra sita no topo, também de escuro tom.
A iluminação do cais se acendeu como reforço à visibilidade ofuscada pela neve que recomeçou a cair, leve e suave como pétalas de florinhas brancas em campo de boninas. A locomotiva estacou com um ruído sinistro de aço rangente no entrechocar de ferro contra ferro, no suspender das rodas e das bielas laterais. Resfolegou pelo escoadouro do cimo e se aquietou do esforço de tirar aqueles pesados vagões de gado; soltou ainda um último suspiro que envolveu de vapor a descida dos dois maquinistas. A neblina condensou-se e o oficial encaminhou-se ao encontro dos dois funcionários, que o saudaram de braço levantado num arremedo marcial e recebeu o rolo de papéis que atestava a carga e a proveniência. Relanceou os olhos pelos cabeçalhos escritos e de imediato levantou a cabeça e a ordem partiu seca e nítida, no silêncio da pausa do meio-dia:
— Achtung! Achtung! Preparar para abrir e formar a duas filas os homens depois do quinto vagão a partir da locomotiva! Para as mulheres que estão nos vagões da frente, abram a um terço só para respirar e aguardarão a descarga até os homens serem enquadrados para os serviços sanitários de inspeção.
Um sargento fez sinal aos kapos que enquadravam os piquetes de ajuda à descarga e lhes deu instruções:
— A cada homem um pão e uma wisse wurst e cada bebedouro tem lotação para dez, não permitam que se amontoem!
Os homens, como um só, sem qualquer resquício de vacilação, como se treinados a preceito pela prática, encaminharam-se em direção às portas corrediças dos vagões e ali estacaram, esperando as ordens dos seus kapos de braçadeira castanha. Os judeus que carregavam os baldes e as raspadeiras da limpeza também se posicionaram ao longo do vagão e aguardaram as ordens dos seus chefes de braçal amarelo. Pelos retângulos gradeados daqueles cubículos de desmaiada cor vermelha ouvia-se o bramido desesperado dos presos que, na ânsia de uma lufada de ar fresco, soltavam imprecações e injúrias. Uma voz mais atilada, talvez de alguém que era suspenso pelos braços dos companheiros, soou nítida e blasfema mesmo junto ao postigo:
— Cães judeus, apressem-se, condenados de um deus maldito!
Aquilo era uma terrível provocação ao messiânico sentimento dos filhos de Abraão, que se entreolharam e guardaram para si o pensamento que se fixou em suas mentes e que está escrito como preceito no Talmude: Até que os judeus os tenham por escabelo dos seus pés. Estes impuros goyim seriam os primeiros a sentir o poder dos escolhidos do Senhor dos Exércitos! Aquela blasfémia terrível seria analisada no conselho sionista do campo e quem a tivesse soltado, melhor fosse que já tivesse desaparecido!
As mãos enregeladas de um polaco manusearam o arame que servia de loquete, pois tal acessório já faltava no aprovisionamento de retaguarda, o que não pressagiava nada de animador ao esforço de guerra nazi. O primeiro vagão foi aberto, o último do comboio, e lançou de imediato, na atmosfera gélida, uma onda de nauseabundo odor que se infiltrou com tal intensidade na fileira de soldados em frente que nos seus rostos era visível a carranca de nojo e, para se manterem estáticos e em ordem, as mãos se aferraram mais às armas automáticas que portavam. Os trabalhadores polacos aproximaram-se mais da saída do vagão e, por estarem mais familiarizados com aquela repugnância que era sua companheira nas enxovias que habitam no campo, quase nem pestanejaram quando o cheiro a merda defecada no chão do veículo chegou às suas narinas. Conforme os ciganos eram despejados, com o amparo dos prisioneiros que os ajudavam, mais se espalhava o repugnante odor a suor, merda e mijo retardado. Era uma onda que já emporcalhava o próprio cais onde o oficial, de rosto franzido pelo asco, se refugiara junto dos êmbolos da locomotiva, cujo óleo derramado e viscoso disfarçava o nojento cheiro, e não deixava de sussurrar entre dentes:
— Schweinen!
O serviço médico sanitário lutava naquele momento com um surto grave de tifo e a inspeção, por rigorosa, era mais lenta, uma medida para obstar a maior contaminação. Os fornos crematórios já trabalhavam a 24 horas para eliminar as vítimas do surto daquela pandemia que ameaçava as linhas de produção das indústrias instaladas nos campos de trabalho, o que tornava ridícula a frase inscrita no quadro da entrada de Auschwitz I, Arbeit nacht frei (O trabalho liberta), porque o tifo ameaçava suspender toda a atividade.
Os recém chegados ciganos, indiferentes à porcaria que tinham deixado nos vagões agora livres, agarravam com as duas mãos ainda imundas de sujidade e trampa a salsicha fora de prazo e o pão duro. Devoravam com a raiva