Nakba. Aníbal Alves

Nakba - Aníbal Alves


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judeu esboçou um gesto de contrariedade e olhou nos olhos a bela ciganita. Aquele olhar negro e puro de malícia, onde o fingimento era arredio, encantou-o de tal sorte, que lhe atiçou o desejo e o rosto lindo de deusa sensual atraiu-o mais ainda para a luxúria que estava no seu pensamento e que ele desejava arrancar daquele corpo de donzela, como um troféu ao seu orgulho de predador devasso. Contemplou o corpo pequeno, mas de acentuados contornos feminis e o desejo, tal como um vulcão, explodiu dentro dele. De um puxão, arrancou os botões e o tecido azul, ao ser rasgado, deixou desnudas aquelas colinas implantadas no peito da cigana: eram lindos e sedutores, aqueles seios de mamilos castanhos e espetados, como pontas de lança. Aquela visão enlevou o desejo venéreo que dominava o seu espírito e, quando ergueu a mão para acariciar o objeto do seu fascínio, foi a calma firme da inocência que conteve o atrevimento nascido da impunidade.

      — Tu podes ter-me, tens-me na tua posse e tens força para possuir-me, mas jamais terás a minha alma! És um homem lindo, embora de uma raça detestada pela nossa. Ao possuir-me, me roubarás a honra, o único valor que possuo, mas o meu nome secreto te perseguirá para sempre, porque eu perderei a vontade de viver e me matarei pelo compromisso assumido pelo meu pai, pois se viver serei amaldiçoada pela família e esse esconjuro me fará o destino maldito.

      — Abramowicz fitou-a com respeito e aquele sentir novo pela primeira vez apoquentou a sua consciência e o levou a sentir saudade pela sua irmã, cujo paradeiro ignorava, ela também uma donzela linda, de uma beleza nívea e imaculada na sua virgindade. A imagem dela, como se de uma visão ilusória se tratasse, apareceu no rosto impassível da gitana e aquela diáfana figura pairou por fugaz instante ali mesmo, entre ele e ela.

      — Explica-me, Shira, o que é isso do teu secreto nome?

      — Eu explico-te: quando uma criança cigana é batizada, é-lhe dado um nome para escrever nos registos da terra onde vai habitar, também o nome verdadeiro pelo qual será chamada dentro da nossa comunidade e ainda um terceiro nome, que é murmurado ao ouvido da mãe. A partir daí, é ela quem depois do primeiro mês de vida sussurrará todos os dias esse nome secreto ao seu filho e fará isto até os doze anos de idade. Depois, nunca mais será pronunciado. Este terceiro nome servirá como talismã e defesa, pois caso tenha morte violenta por agressão ou até por suicídio, o nome servirá como vingança contra o culpado ou culpados.

      — Então, qual o verdadeiro nome por que devo chamar-te? Shira riu-se e, mirando o seu rosto, murmurou:

      — Aqui chamo-me o que escreveste no papel, mas sou Kalila para os meus.

      — O teu prometido ainda é vivo?

      — Não sei, mas embarcou no mesmo comboio.

      — Queres que eu o procure?

      — Sim, te ficarei eternamente grata!

      — Farei isso por ti e te protegerei!

      — Obrigada, meu amigo. Vejo que afinal não és sionista!

      — Não saias daqui enquanto eu não te vier buscar.

      O barracão tinha deixado de ser pista de dança, a música continuava a girar no gramophone, mas sobre as enxergas havia um pandemónio de corpos semidesnudos e suados que rendiam culto a Eros.

      Abramowicz estranhou não ver ali o seu amigo Berger Stein e resolveu procurá-lo. Não demorou muito, uma silhueta à contraluz de um holofote denunciou o companheiro.

      — Olá, Stein! Porque estás aqui?

      — Queres mesmo saber?

      — Sim. Achas que devo?

      — Matei aquela edomita estrangeira, como fazia nas experiências do Anjo da Morte!

      — Mas que raio te deu? Já pensaste como vou desenrascar-me com a falta dela?

      — Ora, a puta era uma coisa impura, negou-se a fazer sexo comigo, porque era virgem e estava prometida. Assim a expedi diretamente para o Inferno, como manda a Torá!

      — Maldito animal! Tu não podes pensar assim, isto vai dar para o torto, aquele Wolfgang é um boche maldito que vai querer contar as mulheres que entraram. Eu dei-lhe a lista com os nomes delas.

      Voltou para dentro do barracão, bateu as palmas e fez-se ouvir:

      — Meus senhores, o baile acabou, agora é hora de recolher e é melhor assim, antes que venha por aí o senhor tenente!

      Não houve reclamações e um dos sargentos, que foi o primeiro a sair, murmurou ao ouvido do judeu:

      — Depois mando-te tabaco e uma garrafa!

      No dia seguinte, logo após o desjejum, reuniu todas as mulheres e falou-lhes:

      — Preciso de escolher dez de vocês para trabalhar no Comando. As outras serão entregues à Debra Luski, que é a dona da casa de diversão do Campo. Ali terão comida, algum dinheiro e tratamento privilegiado. Neste ínterim, enquanto as mulheres estavam agrupadas, chegou o tenente Wolfgang, que se dirigiu diretamente ao judeu e inquiriu:

      — Já escolheste as mulheres para trabalhar na administração do Campo?

      A um gesto de Abramowicz, o grupo das dez filhas de Eva saiu da formação e o oficial deu ordem a dois soldados para acompanhá-las ao seu destino. O oficial começou a contar as restantes e disse.

      — Faltam duas. Onde estão, Kapo?

      — Uma está ali dentro, estava maldisposta e deixei-a ali a recuperar. A outra…

      Não foi necessário responder. Berger adiantou-se e confessou:

      — Senhor, a outra sofreu um acidente, está ali no bosque de abetos, eu matei-a!

      O tenente não fez qualquer comentário, olhou o assassino severamente e fez sinal a dois soldados:

      — Levem-no para a prisão, lá será interrogado, a justiça alemã funciona! Quanto à outra, vai buscá-la e junta-a a estas, para cumprir o mandado!

      Foi junto a Debra Luski, a governanta que estava à frente daquele departamento de prazer, e conseguiu a sua proteção para Shira (Kalila).

      Debra Luski era uma judia estudante de história antiga quando foi enviada para Auschwitz. Como era bonita e culta, depressa conquistou a graça de um major engenheiro químico e trabalhou como sua assistente. Quando o major foi transferido, conseguiu-lhe um lugar num departamento de gestão e depois, logo após a formação do prostíbulo de Birkenau, ela foi nomeada secretária da alemã Olga Müller, que tinha sido nomeada pela administração.

      Abramowicz conseguiu a promessa de Debra para que a bela Shira nunca fosse prostituída. Ela faria, isso sim, outros serviços e bem disfarçada para camuflar a sua beleza natural.

      Foi logo após a comemoração das festas de Natal e Ano Novo que Levy Cross, um judeu que trabalhava como intérprete na administração de Birkenau, lhe disse à boca pequena:

      — Amigo Abramowicz, a guerra está por um fio. Em breve, os russos vão tomar isto. Não gostava de estar na pele dos boches. — e quando lhe perguntou por Berger, este disse-lhe, com intonação compungida:

      — Humm, esse está em maus lençóis. Os alemães são muito rigorosos com a justiça, mormente aqui, em que os juízes são militares. Parece que o conselho de sionistas lhe arranjou um advogado. Oxalá se safe!

      Quem ficou sumamente feliz foi a ciganita Shira, que trabalhava como servente de limpeza no prostíbulo, quando o kapo lhe comunicou que o seu Gilad estava de boa saúde a trabalhar em Auschwitz III e, numa manifestação de amizade, beijou-o no rosto. Foi nesse encontro que Shira, depois de informada sobre o destino da guerra, lhe propôs:

      — Amigo, nós, os ciganos, somos veteranos na passagem de fronteiras. Primeiro atravessamos e depois apresentamo-nos! Se vieres a precisar, nós te ajudaremos, porque tu também me ajudaste, assim como esta amiga que é a minha chefe.

      — Obrigado, querida. Oxalá tudo aconteça pelo melhor. Eu desejo terminar o meu curso


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