Nakba. Aníbal Alves

Nakba - Aníbal Alves


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assinou tudo o que lhe puseram na frente e ainda se filiou a uma das organizações sionistas que lutava no Médio Oriente por mais terra para Israel: a Irgun, que tinha por fito conseguir o que a ONU não permitira na divisão da Palestina. Ele era Berger Stein. De nada lhe interessavam os métodos e tão pouco a independência dos sionistas, mesmo o acicate do nacionalismo que isso podia despertar. Ele só queria enterrar o passado para não ver enlameado o seu presente e para isso nada melhor que camuflar-se numa estrutura também clandestina. Assim, mais depressa se veria livre do pesado fardo que carregava. Descobriu mais tarde que a organização Irgun era comandada por Menachem Begin, um líder favorável ao sionismo revisionista a que o próprio Ben Gurion se opunha com firmeza.

      Berger não fez comentário algum acerca da trapalhada fraudulenta. Ele só tinha que tornar-se um nacionalista e inscrever-se como voluntário para a próxima leva de judeus para a Palestina. Desejava isso, sim, e contar com o apoio da instituição para continuar os seus estudos de jornalismo ao mesmo tempo que, com serviços prestados, apagava o seu passado como kapo no campo de Birkenau.

      Encarregado pelo Centro Judaico de, com a colaboração de outros estudantes da universidade, fazer propaganda junto das comunidades judaicas refugiadas na Suécia, chegou à conclusão que afinal os laços de solidariedade entre os diversos grupos sociais não eram de molde a confiar na sua cooperação para lutar por um objetivo comum. Era necessária uma união religiosa e uma coesão de esforços para conseguir um estado, uma terra de todos para todos. O conceito de raça, que devia ser um elo aglutinador, andava ao sabor das diversas nacionalidades que compunham a comunidade. Também a ideia de uma comum religião estava dispersa pelas tendências culturais, mormente as mais fundamentalistas, que tinham como prioridade a hegemonia sobre as diversas seitas. Era difícil um acordo unilateral a favor da emigração para a Palestina e a solidariedade suficiente para a formação de uma pátria comum, Israel. As diversas comunidades continuavam agarradas à continuidade do estilo de vida de onde tinham a origem. Chegou assim à conclusão que era sumamente difícil conseguir uma união invocando somente a religião e a mesma raça, para os reunir num mesmo ideal. Num relatório que apresentou no Centro Sionista, escreveu que somente um terço dos judeus asilados na Suécia estariam dispostos a emigrar para a Palestina e, como tal, aventava a hipótese de redefinir a política de relação entre a Diáspora e o novo Estado de Israel.

      Para quê estar agora a preocupar-se com o seu serviço como voluntário a favor da causa sionista? Estava uma manhã luminosa e naquele sábado combinara encontrar-se com a sua companheira no grupo de trabalho a favor do Centro Judaico. Erika era uma rapariga moderna, alegre e carinhosa, que nunca fez as tais perguntas que ele temia: quem és? De onde vens? O que fazias? Como a maioria das jovens costumava fazer, as mais das vezes só para satisfazer a curiosidade que lhes estava inculcada nos genes. Erika era diferente. Com ela, encontrava uma afinidade espiritual que jamais topara em qualquer outra mulher. No entanto, havia uma coisa que não conseguia explicar — era não poder olhar para ela como pertencendo à sua raça. Não tinha maneira de entender este complexo que entrava em hostilidade com o seu sentir amavio. Era como uma aversão na forma, mas não no sentimento íntimo. Tudo nela, até os predicados físicos que eram sumamente agradáveis aos seus sentidos, lhe fazia recordar a ideia de uma valquíria das lendas nórdicas, que apagava da sua mente a imagem predefinida daquelas meninas que tinham brincado com ele no gueto de Varsóvia, onde a sua família tinha sido confinada antes da guerra. Aquelas mesmas meninas, adolescentes e mulheres que serviam de modelos de identificação aos esbirros das SS: cabelos negros, pele mate e olhos escuros. Era por esses sinais que os nazis capturavam as mulheres judias.

      Erika tinha a sua altura, os cabelos eram da cor das espigas maduras em campo de pão, os olhos tinham um intenso e celestial tom de turquesa e a tez tinha a pureza de nívea fada! Tudo nela lhe fazia lembrar o que lera acerca dos sortilégios e das lendas do norte da Europa, onde as valquírias podiam ser feiticeiras ou sacerdotisas. Erika era linda, tinha tudo o que um homem deseja numa mulher: vastos atributos feminis, cultura e um corpo belo. Era isto que aumentava a sua confusão psicológica: interrogava-se amiúde se aquela seria a mulher do seu destino e a conclusão, malgrado seu, era sempre abstrata. Por muitas interrogações à sua alma quando pensava numa esposa e companheira, não conseguia predefinir o tipo de mulher que desejava e, quando em tal cismava, a mente, sempre sádica, ressuscitava aquela malfadada noite em Birkenau. Não bondavam já os malditos pesadelos que lhe faziam recordar os tempos nefastos que tinham arrasado a sua dignidade de ser humano, aquela angústia de ter sido feito um fantoche ao serviço dos carrascos do seu povo, e mesmo agora que se via cidadão livre e integrado numa sociedade que tinha a liberdade por divisa, vinham ainda as reminiscências do tortuoso passado avivar-lhe a memória que lhe toldava o ânimo e lhe crispava o semblante. Eram de tal forma insistentes os pesadelos, que se via obrigado às vezes a recorrer à bebida para pacificar a consciência e fazer neutral o remorso. Mesmo embrutecido pelas libações que lhe toldavam o cérebro, aquele maldito momento de lubricidade pecaminosa não se apagava do seu presente. O olhar azeitona da cigana virgem continuava colado aos seus olhos, as palavras sinistras que pronunciara o acossavam como as fauces de lobos esfaimados e o faziam recordar:

      — «O meu nome oculto te perseguirá para todo o sempre! Amaldiçoo-te até o último alento da vida que me roubas e a minha alma leva a tua figura maldita para a eterna peregrinação do teu penar!»

      Ainda sentia a presença daquele corpo que contaminara com a sua perversão e via-o agitar-se nas últimas convulsões. Aquela mirada malvada continuava fixa em sua face mesmo depois do aperto final na frágil garganta. Aquele fantasmal rosto jamais abandonara o seu olhar e, sempre acusativo, permaneceu defronte aos seus olhos, mesmo depois de lhe ter quebrado a resistência e profanado a sua virgindade, o seu tesouro mais querido! Continuou ali, mesmo depois que seu corpo ficou exânime e se abandonou às sevícias, mesmo durante o desfrute do estupro. Ali continuara mesmo até o último anelo em que esconjurara seu espírito num blasfemo esgar ao seu porvir. Aquela maldita mirada jamais o abandonou e nem mesmo quando num acesso de raiva e náusea seus dedos esmigalharam de um sacão o elo cervical que lhe transportava o sopro último! Tinha escrito na mente, como um filme em retrospetiva, o malfadado momento em que, horrorizado com o anátema, arremessou o execrando corpo para o sinistro e gelado bosque de abetos.

      Exausto e com a alma em farrapos, resolveu que tinha que recorrer a artifícios mediúnicos ou sortilégios de magia negra, quiçá a necromancia. Talvez quebrasse assim as amarras do encantamento maléfico. Lembrou-se que na Lei judaica tal era abominação, mas que as Escrituras se referem à feitiçaria como algo de que ninguém duvida e até o próprio José do Egito tem o arrojo de se vangloriar: «Não sabíeis que um homem como eu não deixaria de recorrer à adivinhação?»

      Também tinha lido que Manassés, 14.º rei da Judeia, via profecias de bons e maus eventos nas entranhas ainda palpitantes das pessoas que sacrificava em nome de Azazel.

      Continuou a beber até o último gole e quando topou o fundo da garrafa, ficou bestificado de tal sorte, que se deitou sobre o vómito ainda quente.

      De manhã se enojou de si próprio e foi à procura de um xamã que lhe tinham indicado e que, segundo a informação, exercia as suas milongas clandestinamente num prédio abandonado. Quando lá chegou e olhou a entrada, ouviu a voz de um vagabundo que estava arrimado a uma das ombreiras:

      — Se não és dos nossos, volta ao escurecer, que o bruxo te atende!

      Resolvido a consumar de vez o seu enigma, resolveu dar uma volta pelos arredores e esperar o breu da noite. Entrou num bar e pediu vodka para amortecer e dissipar as brumas que teria de avivar na presença do bruxo. O feiticeiro o mirou fixamente uma, duas vezes, e de cada vez torceu a carranca como se o temesse. Fez uma pausa, ergueu a mão com os dedos em figa, recitou num murmúrio um estranho engrimanço e voltou a olhá-lo:

      — Que maldição mais sinistra te rogaram, homem! Este foi mesmo um laço de amarração, o serviço foi bem feito e é persistente. Não vai ser fácil livrar-te dele. Conta-me como foi?

      Quando iniciou o relato do que se passou naquela noite de maus instintos, do tripúdio estar que alterou seu viver, o bruxo contraiu novamente a carantonha, suspendeu o gesto e a sua respiração


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