Carta muito pessoal de um recluso "Covid-ativo". João Pedro Duarte

Carta muito pessoal de um recluso


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de distância, ao pé da terra onde El Rei D. Dinis imperou que se plantasse um sublime pinhal, ainda existe uma insustentável leveza do ser. É naquele local que posso inspirar e suster as recordações de uma infância qualquer que tive, onde idealizava, numa árvore, a estrutura coesa de uma casa que nunca cheguei a conhecer. Lá, descobri que, a par da árvore, o melhor resultado do trabalho árduo a que nos submetemos quando usamos uma enxada reside nos calos que tendem a prevalecer nas nossas mãos pelo resto da vida. Porém, o breve conto que aqui promete ser narrado tem somente lugar na capital lusitana, sendo que, pelo menos, foi o que me fez parecer desde a última vez que o visitei. Não obstante, é de conhecimento popular que quem conta um conto acrescenta sempre um ponto.

      Naquela manhã de sábado, escoltado pelo calor radiante que fazia abanar os demais corpos agitados, o rapaz sentia a leve brisa que emanava numa esplanada em Belém. Não tomava uma refeição desde as vinte e uma horas da noite anterior, e, como tal, o estômago fazia questão de emitir a luz amarelada da reserva através de um conhecido efeito sonoro. Posteriormente, a torrada servida era convidativa às gaivotas, que se adiantavam em busca de umas quantas migalhas que dali poderiam sobrar.

      Na humildade da sua pessoa, o rapaz esperava a companhia de uma senhora cujo nome não é pertinente ser revelado neste momento. À medida que observava atentamente o horizonte na direção do Padrão dos Descobrimentos, o recibo da conta surgia acompanhado de um mísero rebuçado. A senhora não fazia cerimónia nesta sua demora, como se estivéssemos perante o dia “D” onde os amados juram adorar-se pela eternidade. Depois de folhear o jornal que comprou num quiosque ali perto, Armando deixou uma nota de cinco euros em cima da mesa onde tomara a refeição.

      Durante horas a fio, o jovem passeou à beira do Tejo enquanto ouvia o burburinho habitual das pessoas que andavam por ali em busca de alegria e boa disposição. No entanto, o entardecer já estava prolongado, e daqui por uma hora ia ter início mais um jogo do Benfica. Ele era um adepto fervoroso de futebol, todavia, não compactuava com as cenas de pancadaria e escárnio que assumem forte protagonismo na relação entre os aficionados dos vários clubes. Após alguns minutos à procura do lugar onde havia deixado o carro, descobriu que tinha sido a largos metros de distância da esplanada onde esteve da parte da manhã.

      Na mesma altura em que o rapaz estava atarefado a tentar remover a sua viatura do estacionamento sem embater nos carros que estavam localizadas em seu redor, Luísa descascava uma laranja a alguns quilómetros de distância. Luísa, a mãe do nosso protagonista, tinha somente um metro e meio, porém, esta medida representava uma mulher doce, de beleza irredutível e coragem desmedida. De facto, os múltiplos adjetivos de excelência não chegam para dignificar o estatuto de uma mulher que recebeu a educação do povo descendente da padeira de Aljubarrota. Luísa tomava o gosto ao sumo da laranja enquanto olhava para o relógio da cozinha, cujos ponteiros indicavam que a chegada do filho deveria estar para breve.

      Nos dias em que eram transmitidos jogos de futebol, não existiam refeições muito elaboradas lá em casa. O rapaz, que nunca tinha grande apetite quando se confirmava o infortúnio da turma da Luz, optava sempre pela eficaz sanduíche de presunto quando fados mais alegres fixavam o resultado final. O jovem tentava dominar a arte sublime da cozinha, mas não se pode dizer que ostentava feitos propriamente valerosos. Embora nunca tenha sido muito esquisito a avaliar os atributos culinários de outras pessoas, é certo que ainda ia tendo as suas birras de petiz, e, nessas situações, Luísa resolvia a questão com o requinte de uma posta de tamboril confeccionada com uma batata cozida, o único “prato” que o filho detestava com quantas forças tinha.

      Ao entrar no carro, o rapaz temia a forma como este ficara encurralado naquele local. Tinha tirado a carta de condução há pouco menos de dois meses, e, naquela situação, teria de efetuar um conjunto de manobras apertadas para conseguir sair do parque de estacionamento. Pelo menos, já não confundia o travão com a embraiagem, e encontrava agora o ponto de embraiagem de forma a que o carro começasse a ameaçar o início da marcha. Ao fim daquela demanda, meteu a primeira mudança, depois a segunda, por fim a terceira, e depois ia alternando como que num jogo de xadrez com a caixa de velocidades, ao som de um álbum dos GNR, que o guiou até casa.

      Naquela noite, o rapaz tinha degustado a tal sanduíche de presunto em jeito de prenúncio triunfante. O Benfica tinha somado mais três pontos no campeonato nacional, graças a um golo marcado nos minutos finais do jogo. O acontecimento ia dar azo a inúmeros debates acerca da veracidade e legalidade do referido lance, uma vez que este tipo de confronto tribal tendia a ser aposta universal nos canais de televisão generalistas. Mais tarde, como era habitual quando ambos não tinham afazeres ou encontros marcados com os respetivos amigos ou conhecidos, mãe e filho decidiram ir ao cinema. É que o cinema tem essa beleza muito própria de, a par dos livros, assumir a forma de portal que nos dá acesso a uma amálgama de universos alternativos.

      No dia seguinte, não se ouviram os dois toques habituais da campainha que, por norma, costumavam ocorrer pelas oito horas da manhã de quase todos os dias lá por casa. O senhor Lemos, carteiro de profissão há mais de quinze anos, não andava na faina habitual. Era domingo. Adicionalmente, o calendário espelhava também que tinha lugar o dia 19 de março, a data em que se homenageia a figura familiar paterna. Luísa iria almoçar com o pai, o avô do rapaz, que, apesar da tacanha e mísera carência auditiva, não apresentava quaisquer lapsos de memória. Em contrapartida, o jovem não tinha qualquer espécie de ligação ou afeto pela data em questão, muito em parte por terem sido raras as vezes em que a pôde celebrar condignamente.

      Tal como D. Sebastião, que assumiu o reino de Portugal e dos Algarves com um desconcertante fervor militar e religioso, também Alberto, o pai do rapaz, foi solicitado a reviver os tempos de glória da Reconquista da família. De nome aparentemente possante e porte atlético, este homem tinha sido criado à imagem de um guerreiro que assumiria as fileiras de todas as batalhas, e que iria dignificar o nome da família e da Pátria pela ousadia com que se atrevia a navegar além dos inúmeros “Bojadores” desta vida. Do amor que se adivinhou entre Alberto e Luísa, surgiria um filho em jeito de ode à união que previa ser duradoura.

      Contudo, Alberto tinha a ambição de perfurar o inalcançável, de trincar o fruto proibido, e de descobrir a dádiva efémera que nenhum outro mortal conseguia idealizar. Nessa sua missão em busca da prosperidade e felicidade que o Império clamava, Alberto partiu com a promessa de um regresso triunfante. Para trás, ficaram a esposa e o filho que, doravante, teriam de consumar a partida da figura que talvez surgisse num amanhecer risonho. Durante alguns anos, o “Desejado” foi chorado pelo rapaz, todavia, e embora nunca tivesse deixado de ser recordado com carinho, passaria mais tarde a ser considerado uma lenda, cuja história era o pináculo da metamorfose entre realidade e fantasia.

      O rapaz exercia funções profissionais no Aeroporto da Portela, nome que futuramente viria a ser substituído pelo do general sem medo, aquele que, no decorrer da sua candidatura à Presidência da República, ameaçou afastar o tal senhor “feito de sal e azar”. No entanto, como tinha tirado uns dias de férias, não sentia o incómodo usual na coluna que era provocado pela carga horária extenuante. Se no sábado tinha escolhido passear junto às margens do Tejo, o jovem pretendia agora dar uma escapadela, se assim é permitido afirmar, por um local mais perto da sua casa. A mãe ia almoçar com o avô, e as papilas gustativas do rapaz sentiam o rasto que prometia levá-lo, através um bilhete só de ida, até ao manjar dos bifes da Portugália, que ficava na Avenida Almirante Reis.

      Luísa já tinha saído para ir ter com o pai, mas o rapaz ainda estava em casa, e com o pijama a assentar-lhe como uma luva. Antes de ir almoçar, decidira que havia chegado a altura de se barbear, visto que já apresentava um tufo de pelo serrado por toda a face. Ao invés de eleger aquelas lâminas de barbear descartáveis, usava uma navalha clássica que o tio João lhe tinha oferecido quando se começou a notar o formato de um buço tímido. Depois, escolheu peças de roupa simples para ir ao encontro do tal bife. Tirou do roupeiro um par de calças de ganga ligeiramente largas, uma camisola de manga curta com a imagem de Jules Winnfield e Vincent Vega, do clássico Pulp Fiction, um casaco banal e, por fim, calçou os ténis que tinha comprado há um ano e meio na Baixa. Para um rapaz de vinte e quatro anos, o ‘look’ escolhido não era efetivamente prometedor, mas como o fraque era o traje de


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