Carta muito pessoal de um recluso "Covid-ativo". João Pedro Duarte

Carta muito pessoal de um recluso


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de Portugal. Quando tinha sete anos, o seu pai estava a trabalhar em Lisboa e, por conseguinte, ela teve de abandonar a sua aldeia, juntamente com a mãe e a irmã, com o intuito de descobrir uma vida melhor junto do pai na capital. Uma semana depois, o avô da menina foi a Lisboa ver se filha e as netas estavam bem instaladas, e idealizar se a vida na capital era, de facto, uma mais valia para o futuro de todos eles. Inevitavelmente, quando viu o avô, Fernanda (o nome da menina) teve a certeza que o seu coração palpitava pela vida na aldeia, pelo vento a moldar-lhe a forma do cabelo, pelo aroma das laranjeiras e das oliveiras que emanava no ar, e pela liberdade que nunca deixou de sentir. A rapariga conseguiu. Regressou à aldeia com o avô.

      Por infortúnio do destino, seis meses após ter regressado, o avô recebeu o chamamento divino de Deus, e não podia acompanhar mais a menina, nem os campos onde ela podia correr como um autêntico potro livre de receios. Para além do avô, a rapariga viva com a avó e um tio, de seu nome Risota, que estava viúvo naquela altura. Perante aquela situação, a mãe da jovem Fernanda tentou que ela regressasse a Lisboa, visto que tinha perdido a pessoa que a ajudara a regressar à aldeia. Porém, Risota viu naquela menina a filha que nunca teve, e pelo afeto empregue pelo destino, pediu à mãe de Fernanda que a deixasse ficar. Durante três anos, a menina viveu na aldeia, e foi com o tio que vivenciou um dos períodos mais felizes da sua vida. A avó de Fernandinha fazia a sua vida com a água da chuva, e com água que ela tirava de uma pia medieval. A rapariga ficava sentada a vislumbrar toda aquela leveza de espírito, num trilho que Risota fazia enquanto moía o trigo e cuidava do gado.

      Só que, após esses três anos de alegria, Fernanda já tinha mais um irmão, e a mãe não quis que ela continuasse a viver tão longe da cidade. Quando regressou a Lisboa, Fernanda foi aprender a ser modista. Para aquela criança, que tinha aprendido a ser genuína e livre, o período em questão foi deveras conturbado. Ela não estava habituada às regras da cidade, e todo aquele aparato fazia com que sentisse saudades de casa, junto das figueiras e dos pastos. Não obstante, a função de modista revelou ser um tanto ou quanto valiosa para Fernanda, visto que a obrigou a aprender a cumprimentar uma senhora, e a saber estar à altura da sua posição social. Em Lisboa, o trabalho de Alice, a mãe de Fernandinha, incidia na venda de leite e, desta feita, a rapariga ia sempre ajudá-la antes de picar o ponto na sua modista. Peremptoriamente, os anos iam passando, mas a menina nunca esquecia a sua aldeia, e, entretanto, o seu sonho era poder exercer funções de modista por lá. Contudo, os Deuses tinham outros planos reservados para Fernanda.

      Aos dezasseis anos, Fernanda conheceu um rapaz em Lisboa. Chamava-se Armando, era um sujeito franzino, de aparência singela, mas cuja perseverança e vontade de triunfar na vida não passaram indiferentes aos olhos da rapariga. Embora se tenham conhecido na capital, ele também era natural da mesma aldeia de Fernanda, mas não viveu lá muito tempo. Durante a infância, Armando era um rapaz feliz. Andava na escola, não tinha problemas, uma vez que os seus pais trabalhavam e possuíam campos agrícolas. Na escola, planeava brincadeiras traquinas e habituais para alguém com a idade à flor da pele. A professora apertava-lhe as orelhas, dava-lhe com uma vara, punha-o de castigo, e ele, no seu jeito gingão, fugia pela janela. Aos 14 anos, depois do pai ter falecido, tudo mudou na vida de Armando. Embarcou na demanda de se aventurar por Lisboa, sem poder contar com ninguém que lhe estendesse a mão. Durante os anos de 1960, trabalhava entre catorze a quinze horas por dia numa leitaria. Aos poucos, conseguiu arranjar alojamento, um salário digno das suas funções e encontrou uma rapariga que tentava colmatar a falta do afeto que, naqueles últimos tempos, era como que uma antítese da alegria que vivenciou em rapaz.

      Ela nutria aquela saudade platónica do sabor do figo maduro que lhe caía junto aos pés, da companhia solitária da Serra que nunca a abandonava, da serenidade dos animais que a viram crescer, e da aldeia que ansiava o seu regresso. Não obstante, Fernanda era um canário que tinha encontrado o seu poiso em Armando que, embora fosse um pouco mais velho do que ela, via naquela rapariga a mulher com que pretendia enfrentar momentos escuros como breu, derrubar barreiras, e construir a família que nunca chegou a consolidar. As estrelas tinham escrito que, entre tormentas e uns quantos desalentos, Fernanda e Armando haveriam de jurar amar-se e respeitar-se na saúde e na doença, tendo Deus como testemunha daquela união que prometia vigorar para sempre. Pelo esforço e suor de ambos, conseguiram conceber um ninho, um sítio que lhes permitia estruturar a família que tanto ambicionavam.

      Pouco tempo depois de terem casado, Fernanda deu à luz uma menina. Aquela menina era a obra mais bonita que Deus tinha permitido a um mero mortal conceber, ofuscando inclusive a Pietà de Michelangelo. A cor dos seus olhos era como que o sangue que lhes corria pelas veias, e que os fazia recordar que a vida, mesmo em tempos de penumbra, era maravilhosa. Naquela altura, Armando conseguiu um emprego que não lhe roubava tantas horas da sua vida e, como bónus extra, tinha amealhado mais uns cobres para proporcionar uma vida desafogada a Fernanda e à sua pequena ninfa do Tejo.

      Naquele ano de 1967, ocorreu também um grande cataclismo, as Cheias de Lisboa. Aquele fenómeno perturbou Fernanda de forma colossal, visto que, da janela de sua casa, via a destruição e a tragédia a bater à porta com uma veemência fora do comum. Felizmente, a tempestade passou, e, a pouco e pouco, a vida voltaria a tomar um rumo normal na capital, fazendo com que a vida de Fernanda e Armando retomasse a normalidade no quotidiano de outrora.

      Posteriormente, no início da década de 1970, o casal teve mais um filho, mas, desta vez, era um rapaz. Desejado por ambos, e recebido com quanto amor e afeto seria possível demonstrar, a chegada do bebé vinha oferecer uma lufada de ar fresco revigorante à família, especialmente à menina, que sempre ambicionara ter um irmão com quem pudesse brincar e fazer tropelias. Naquela década, a vida de Fernanda e Armando mudou radicalmente, dado que testemunharam um dos acontecimentos mais preponderantes da sua geração. Começavam a surgir as primeiras manifestações contra o governo daquele período histórico. Efetivamente, os atos mais reacionários por parte dos estudantes começavam a ganhar força, ao passo que os trabalhadores e operários não almejavam quaisquer possibilidades de reivindicarem direitos ou de expressarem opiniões públicas. A Direção Geral de Segurança só foi extinta no 25 de Abril de 1974 e, até lá…”.

      De repente, o rapaz interrompeu Luísa de relance: “Creio que o cerne da DGS ou da PIDE nunca saiu da nossa memória. Não reparas na selvajaria que corre pelas redes sociais? A dificuldade que temos em respeitar opiniões alheias? Se calhar, é tudo grão da mesma mó.”. Luísa rasgou um sorriso perante a intervenção, assentiu, e continuou a contar a história.

      “Pois, talvez, mas onde é que eu ia? Ah, sim, as manifestações. Depois, com o 25 de Abril, tudo mudou, mas não foi logo de repente. Fernanda e Armando sentiam uma amálgama de emoções, entre receio e felicidade, mas não sabiam qual das duas iria perdurar. As pessoas não sabiam o que era viver em democracia. Surgiram excessos, e havia coisas às quais a população tinha direito, mas que não conseguia obter. Para o casal, aquele ambiente era uma surpresa inédita. Naquele 1º de Maio, Fernanda e Armando andavam de mão dada na rua, com os dois filhos, e, pela Alameda D. Afonso Henriques, iam ouvindo o povo gritar: “que raio de governo era aquele!”. O espanto era imperativo por, naquele período de incerteza, qualquer um poder proferir aquela frase sem ganhar um bilhete só de ida para Caxias. Respirava-se um ar de mudança. A pouco a pouco, parecia que o país se erguia como quando alguém se levanta da cama depois de um período de febre alta. Armando, que chegara a trabalhar dezasseis horas por dia para ter uma vida digna, via-se agora na posição de poder ter direito a proferir as suas convicções políticas e sociais.

      Com o passar do tempo, os níveis de vida foram melhorando. Armando teve de arranjar um emprego novo, e Fernanda acompanhou o marido nessa nova aventura, uma vez que, naquela altura, era o usual a fazer-se, eram os costumes, as tradições, e essa realidade nenhuma revolução conseguia mudar. Os filhos foram crescendo, começaram a trilhar a vida de cada um, e o casal percebia que a sua missão tinha sido cumprida de forma coesa. Fernanda e Armando viram os triunfos sublimes dos filhos, viram um neto a nascer, e perceberam que, por muitas dificuldades e tristezas que tenham enfrentado ao longo do labirinto, nunca deixaram de lutar em prol da descoberta de um mundo melhor.”

      “E é esta a minha história”, disse Luísa. “É a história de duas pessoas que nasceram no mesmo lugar, mas


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