Carta muito pessoal de um recluso "Covid-ativo". João Pedro Duarte

Carta muito pessoal de um recluso


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jovem estava pronto para sair de casa. No preciso momento em que começava a rodar a maçaneta da porta que dava para a rua, o telemóvel emitiu uma daquelas sinfonias que já vêm pré-definidas, e que são usadas como “toque” que nos adverte para a chamada de alguém que pretende ouvir a nossa voz sem ser pessoalmente. No ecrã do telemóvel, surgia o nome daquela senhora que não tinha comparecido ao encontro no sábado, e que deveria agora vir de beicinho a mendigar perdão com falinhas mansas. Já proclamava o sábio povo que “água mole em pedra dura tanto bate até que fura”, mas o rapaz, apesar do ressentimento imposto pelo senso comum, não aprendia a lição depois de tantos episódios em que ficou de mão dada com a solidão. Ele estava deveras aborrecido uma vez que, de acordo com o seu pensamento, tinha sido descartado como se fosse uma personagem fictícia de um livro que pode aparecer ou sumir de acordo com a vontade do autor.

      O rapaz admitia que aquela sua palpitação momentânea por Helena (sim, é este o nome da senhora) poderia surgir de um encanto meramente platónico. Desta feita, tinha desistido de investir tempo e empenho na tentativa de cultivar algo mais intenso que uma amizade simpática. Helena permutava de apaixonado como quem efetua transições rápidas de peças de roupa íntima. Por conseguinte, o facto de não ter comparecido no encontro de sábado parecia simbolizar a gota de água primordial para o moço. No entanto, como em todo e qualquer bom cliché relacionado com pieguices românticas, ele não deixou de atender o malfadado telemóvel. De forma carrancuda, proferiu um simples “Estou!”. Helena, por sua vez, com a voz ofegante, não deixou escapar muito mais que uma dúzia de palavras – “Olá, Armando. Estou a ligar só para perguntar se me podes emprestar “A Doce Vida” do Fellini”. Neste filme, o protagonista é um jornalista que assume um deslumbramento colossal por uma jovem atriz. Efetivamente, foi um tipo de fascínio quase semelhante que fez com que o rapaz decidisse responder de forma civilizada ao tema em questão, sem remeter o antecedente em que ficou abandonado ao deus-dará por Belém. “Sim, por acaso tenho esse filme num formato de edição especial”, disse o jovem. “Fantástico! Posso passar aí por tua casa às cinco horas da tarde para o ir buscar?”, declamou a rapariga. “Julgo que sim. Até logo.”, terminou o rapaz por dizer.

      Por si só, seria falacioso declamar que o rapaz mantinha uma certa preocupação relacionada com a quantidade de gases poluentes que o seu carro emitia; todavia, é certo que escolheu a boleia de dois autocarros para ir almoçar à Portugália. Durante o trajeto, encontrou um daqueles conhecidos que, por infortúnio do destino, surgem no local certo à hora que menos convém. Ele, que ainda matutava no telefonema que tinha recebido há menos de uma hora atrás, via-se agora obrigado a aparentar interesse na vida monótona de Carlos, um antigo colega de faculdade, que também andava a divagar por Lisboa. Ao mesmo tempo que falava com Carlos, notou que tinha algo guardado num bolso da parte interior do casaco, mas como não se lembrava do que poderia ser, preferiu guardar a revelação para depois.

      Enquanto não chegava a hora de desamparar a loja, Carlos ainda teve tempo de resumir a sua estadia em Veneza, cidade que tinha visitado durante a semana transata. Embora esta companhia fosse deprimente em toda a sua plenitude, o tópico em redor de Veneza era como uma melodia suave para os ouvidos do rapaz que, embora fosse bastante viajado, nunca tinha tido a oportunidade de confraternizar com a Rainha do Adriático. “Olha, é um autêntico labirinto, onde não precisas de te orientar com mapa ou bússola”, disse-lhe Carlos. Em contrapartida, achou por bem omitir o facto de ter ficado praticamente a pão e água nos últimos dois dias da viagem, por ter esbanjado uma vasta porção de euros em passeios românticos de gôndola. No final, para Carlos, São Marcos permaneceu no mesmo nível apático que o seu querido Santo António, cuja única função é aparecer em Alfama lá para o início de junho, e na pele de santo padroeiro da sardinha e da cerveja.

      A conversa terminou quando o autocarro parou na estação da Avenida Gago Coutinho, onde Carlos saiu. Para o rapaz, já não faltava muito até estar na companhia de um daqueles bifes servidos na clássica frigideira da Portugália, onde, ao balcão, os preços eram ligeiramente mais atraentes. É certo que, no decorrer dos anos, mudam-se os tempos e as vontades, contudo, o rapaz foi invadido por um célebre momento ou sentimento de nostalgia. A textura e o sabor do molho apresentado no bife que lhe tinha sido servido, continha exatamente a mesma definição de gosto que naquela ocasião em que o tio João o levara a experimentar a referida iguaria, há tantas primaveras atrás. Depois, terminada que estava a refeição, passou rapidamente pela casa de banho dos senhores para se certificar que o bigode tinha saído ileso às tropelias do molho diabrete e, sem mais nada a apontar, estava preparado para voltar a casa.

      Sob pena de chegar atrasado, uma vez que tinha o tal compromisso marcado com Helena, o rapaz decidiu não efetuar desvios secundários após o almoço. Lamentou o facto de não ter a possibilidade de ficar a ler um livro, ou até mesmo um jornal, algures na Praça do Chile. Já num dos dois autocarros que tinha de apanhar para regressar, constatou que trazia uma edição de bolso de “Grandes Esperanças” de Charles Dickens numa das algibeiras interiores do casaco. O frio tendia a prevalecer com maior intensidade nos últimos dias, e aquele casaco tinha sido guardado no roupeiro há dois ou três meses. Desta forma, não se recordava ao certo da data em que tinha comprado o livro, e por que razão o tinha deixado num bolso qualquer. A princípio até pensou folhear a obra de relance, mas como não suportava as habituais dores de cabeça quando tentava ler algo num transporte em movimento, o tiro saiu-lhe pela culatra.

      O rapaz chegou a casa poucos minutos antes das cinco da tarde. Antes de averiguar a prateleira onde estava o filme que iria entregar a Helena, deu um beijo na testa da mãe, que, entretanto, já tinha regressado do almoço com o avô. Enquanto a gata ronronava em sinal de puro mimo, Luísa estava sentada numa das poltronas da sala a ler um livro de Daniel Sampaio. Ao contrário do rapaz, a mãe tinha uma missão bastante concisa neste mundo que julgamos conhecer. É que Luísa tinha a arte e o engenho de ajudar pessoas a colmatar algumas mazelas do corpo e da mente, ao mesmo tempo que se via forçada a testemunhar o sofrimento alheio. Por vezes, conseguiu resgatar um certo aglomerado de viajantes que estavam de malas aviadas em direção aos montes e vales administrados por São Pedro. Embora lutasse com todo o seu arsenal de convicções e faculdades para colocar uma rolha à garrafa da morte, seria contranatura impedir que esta desempenhasse o ofício que tanto lhe compete. Para o rapaz, se a mãe estava apta a cumprir a sua missão em prol dos outros, ao mesmo tempo que possuía discernimento para suportar as rasteiras da ciência e do destino, então só poderia ser o braço direito de um Deus maravilhoso.

      Às cinco horas, o rapaz estava à porta de casa com «A Doce Vida» na mão. Do outro lado da rua, um cão passeava com o dono num estilo gingão. Ao longe, viu a figura da mulher que o tinha abandonado no início de mais um fim de semana qualquer. O seu coração palpitava como nunca, e os dedos entrelaçavam-se uns nos outros. Afinal, havia uma justificação para Helena ter faltado ao encontro com o pobre rapaz. Mas há que perdoar a criatura, visto que, muitas vezes, o ser humano tem o engenho de criar amuos e enredos fictícios só para ver o tempo passar, e para justificar a ausência de uma tarefa que ocupe a passagem dos dias, dos meses e até dos anos. O rapaz entregou-lhe o filme, trocaram dois dedos de conversa, e a interação entre ambos seria como uma folha caduca, ou até como aqueles juízos de valor que muitos gostam de declamar, mas que de pouco valem para quem tentam curar.

      O rapaz voltou para casa, cabisbaixo, como se tivesse levado um murro no estômago. Mais do que a desilusão por não ser correspondido, era o desalento de perceber que Helena não idealizava o destaque e o esforço que o rapaz fazia para receber uma espécie de afeto diferente de algo meramente comum. Luísa via aqueles olhos azuis faiscarem de tremor e melancolia, contudo, tinha uma história bem guardada para fazer reacender a chama daquele coração despedaçado. Luísa conhecia a história de um amor improvável, cuja Fénix renasceu das cinzas, e que nunca mais deixou a chama esmorecer. “Senta-te aqui. Vou-te contar uma história”, disse Luísa. “Mãe…desculpa lá, mas, muito sinceramente, as tuas palavras ensaiadas valem-me pouco neste momento”, atirou o rapaz em jeito de desespero. No entanto, quando os seus olhos foram ao encontro do vislumbre da progenitora, não foi capaz de a abandonar com aquela resposta, e acabou por sentar-se no sofá.

      “Sabes, vou contar-te a história de duas pessoas que conheci em tempos, e que me ensinaram


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