Grandes escolhas: Autobiografía regeneradora. Ricardo Beltran

Grandes escolhas: Autobiografía regeneradora - Ricardo Beltran


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Desci para entender e aprender sobre os outros. Interrompi jogos de berlinde para que me perguntassem quem eu era e de onde vinha. Comecei a contar e a inventar histórias do meu mundo na herdade do Monte Novo, onde vivia, e ao mesmo tempo que os outros miúdos me ouviam, eu absorvia intuitivamente tudo o que tinham. De vítima passei a vilão, sem uma única arma na mão. De não saber nada sobre relacionamentos humanos, passei a ser o maior consumidor, criando laços muito especiais com dois miúdos, um do campo e outro da vila.

      Nos entretantos dessa fase não digital tão maravilhosa, a vida abençoa-me com a proximidade de um Homem adulto que me embebedou em água. Foi o Homem que me ensinou a pescar em águas interiores e me disse um dia que «a pesca é a única atividade em que o homem não vê o seu adversário». É essa a magia da pesca, que nos ensina que o adversário invisível, imprevisível e complicado de perceber é aquele que mais contribui para a nossa evolução, semeando capacidades visíveis em nós. A pesca é o meu mentor silencioso, o processo de fermentação de todas as Escolhas que vou fazendo e o único palco em que valorizo aquilo que mais me assusta: solidão e silêncio. Sim, porque muitas vezes o nosso equilíbrio se encontra também naquilo que mais nos aflige.

      Existir era naquela fase da minha vida uma celebração diária da liberdade. Eu não tinha um único brinquedo de loja, não havia nada digital nem tecnológico, mas tinha paus, pedras, fisgas e uma imaginação que me permitia fazer de uma borracha um motociclo. Tinha liberdade, natureza, simplicidade, animais, proteção, descoberta, amizades genuínas, conquista, crescimento, aprendizagem e diversão. Enfim, tudo o que qualquer criança merece. Tão simples que era a fórmula do bem-estar.

      Nas férias grandes de verão era costume eu ir passar quinze dias ao outro extremo do país — Chaves — onde residem os meus Tios, que também são meus Padrinhos. Em nome da honestidade desta confissão, o único embrião que me unia àquele sítio era a «veiga» do Tio Chico, onde ele era responsável por uma manada de vacas leiteiras e algumas culturas agrícolas. Saía do campo no Alentejo para ir passar férias no verão no campo de Trás-os-Montes com o Tio Chico, Engenheiro Agrónomo à antiga, Homem de guerra do ultramar e aquele a quem nunca precisei chamar de Pai para que o nosso amor fosse paterno.

      No verão de 1990, tinha eu onze anos de idade biológica e já com o Alentejo bem entranhado e embebido em mim, é-me dito que — como de costume — iria passar alguns dias das férias do verão em Chaves com os Tios. Para mim eram apenas mais quinze dias de férias de verão épicas no campo com o Tio Chico.

      Mas não. Naquele verão tudo foi distinto.

      Estava eu apaixonadamente a viver as minhas férias nortenhas e eis que me cai um dilúvio de alheiras em cima. Para meu espanto, a minha Mãe, Irmã e Avó chegaram também a Chaves vindas do Alentejo, apresentando um estado de espírito afagado, devastado e com muito mais malas do que as que seriam necessárias para um curto período de férias. Perguntei-lhes o que estavam ali a fazer com tantas malas, e, num raio de palavras bruscamente soletradas, foi-me dito que não mais iríamos viver no Alentejo. A minha infância, os meus Amigos e a minha identidade existencial foram-me ali retiradas.

      Aquele era o resultado de um divórcio abrupto entre a minha Mãe e o meu Pai, e eu não tinha Escolhido aquilo. O maior problema nem foi o divórcio propriamente dito, porque se os meus pais assim o decidiram é porque certamente seria o melhor. O que me impactou mais foi mesmo a forma repentina e bruta como tudo se passou e como me foi retirada a minha infância, tanto no espaço como no tempo. Sofri inocentemente e em silêncio, e deixei-me ficar imergido, banhado na inocência de um miúdo de onze anos que não tem noção daquilo que o espera.

      No final desse verão conturbado — em que nem sequer tinha ainda assimilado a ideia de que vivia agora a mais de quinhentos quilómetros do meu Alentejo —, indicaram-me o caminho de uma nova vida e de uma nova escola, naquele extremo escondido de Portugal, onde mentalidades e sotaques eram completamente opostos aos meus.

      O sexto ano de escolaridade foi o primeiro ano de uma nova vida. O sotaque do Norte era muito raro, frio, distante. Não se jogava ao berlinde. Ninguém calçava a bota caneleira. Havia árvores no recreio, isso sim, mas não fazia sentido trepá-las de novo. Para além dos traumáticos eventos de conflito com ciganos e das primeiras extravagantes paixões consumadas, eu recordo a crueldade típica daquela idade, com os miúdos transmontanos a não me perdoarem o sotaque ou a boa relação com os cães de rua.

      Continuei a crescer e a evoluir inconscientemente, mas dentro de mim a liberdade estava ainda totalmente apegada ao que me havia sido retirado. Como o Alvarinho fora do Minho. Tinha tantas saudades do meu Alentejo, dos meus Amigos, da minha infância, do meu mundo. De quem eu queria ser e de onde eu queria estar.

      No final daquele primeiro difícil ano de escolaridade em Chaves, eu já tinha conseguido encontrar um ritmo social mais equilibrado e feito um par de Amigos. No entanto, o sistema escolar português obrigava a uma nova mudança de escola, quando a última coisa que eu precisava era de recomeçar tudo de novo… outra vez! Eu queria obviamente ir para a escola dos novos Amigos que tinha feito entretanto, mas como a Família decidiu mudar de bairro, a Mãe, com a melhor das intenções, Escolheu uma escola diferente, e lá fui eu de novo invadido pela necessidade de recomeçar tudo de novo.

      Seguiram-se mais três anos peníveis, com aquele meu feitio tão puro, inocente e bondoso que tanto jeito dava aos demais para me fazerem de cobaia. A melhor coisa que me aconteceu naquela nova escola foi ter encontrado um miúdo também ele vindo do nada, e também ele vítima de uma rotura familiar em tudo idêntica à minha. Um Amigo da vida e para a vida.

      Com tantas roturas precoces, a ter de recomeçar tudo várias vezes, um Pai a quinhentos quilómetros e uma Mãe que dava o que lhe era possível, eu hoje estou em condições de reconhecer que, perante a adversidade precoce, tive de Escolher entre perder-me ou encontrar-me. Com o passar do tempo, comecei a perceber que os miúdos transmontanos eram demasiado homogéneos e aos poucos comecei a sentir-me um pouco «especial». Era difícil de explicar, mas sem ser o rapaz mais atraente ou bem vestido, atraía para perto de mim as atenções com alguma facilidade e sem ter de trepar às árvores. Ingenuamente, nunca tentei descodificar isso e, genuinamente, deixei que o dom da palavra se tornasse no meu logótipo.

      Recordo, com especial saudade, os miúdos do bairro a tocarem à campainha de minha casa para me pedirem conselhos sobre desavenças amorosas ou técnicas de conquista, numa época em que a tecnologia era uma miragem e em que ainda se trocavam cartas de amor manuscritas.

      Eu começava a ter os primeiros apreciadores do meu próprio mundo. Os miúdos rebeldes, agressivos e gozões começavam a distanciar-se de mim, e eu começava finalmente a vislumbrar alguns sinais de êxito social, sem, no entanto, conseguir apagar a saudade do meu Alentejo. Em Chaves, a dor da infância, que me havia sido roubada, apenas se acentuou com o tempo e as ânsias de reencontrar os cachos outrora caídos dos meus ramos, eram muitas.

      Com quinze anos de idade biológica e depois de me ter enraizado durante três anos na mesma escola, o meu «terroir» começava a ganhar uma certa identidade. No entanto, a Escolha alheia viria a prevalecer mais uma vez.

      A intenção da Mãe em me inscrever num curso profissional da área financeira — contra a minha vontade — era boa, pois a nossa Família não tinha dinheiro e a ideia era eu começar a trabalhar no final do ensino secundário. Apesar de eu saber que a área financeira e matemática eram a antítese da minha essência, eu resignei-me perante a sabedoria da minha Mãe e lá fui recomeçar tudo de novo mais uma vez… numa nova escola onde não conhecia ninguém.

      Naquela idade, eu já não era tão inocente nem tão Amigo de todos — passei a ser um cocktail de bondade e inocência com loucura e coragem — mas ainda pagava o preço por ser genuinamente puro. Mais uma vez, os astutos mal-intencionados da escola usavam-me como cobaia e certos eventos germinavam em mim autênticas bombas-relógio de revolta, que com o passar dos anos fui aprendendo a gerir, colocando cada vez mais armaduras em redor de mim mesmo.

      Recordo, sem saudade alguma, um chico esperto da turma que escreveu uma carta insultuosa e deploravelmente humilhante a uma rapariga também da turma, que cuja natureza não tinha favorecido. A certo


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