Grandes escolhas: Autobiografía regeneradora. Ricardo Beltran

Grandes escolhas: Autobiografía regeneradora - Ricardo Beltran


Скачать книгу
alguns. Ato seguinte, fui convocado para uma reunião com diretores da escola com o intuito de me acusarem formalmente e de me aplicarem a devida sanção. A minha Mãe foi também informada pela escola e confrontou-me com as acusações.

      A conversa com a minha Mãe fluiu de forma natural, e ela rapidamente reconheceu a minha total inocência, propondo-se ela própria a falar diretamente com os diretores da escola. Mantive-me firme e disse-lhe para ficar tranquila que eu resolveria aquilo sozinho.

      Uns dias mais tarde, teve lugar a dita reunião. Entrei numa sala, com seis pessoas, que mais parecia um cemitério, tal não era o espírito sobrecarregado dos intervenientes. Estavam presentes o diretor-geral da escola, o diretor pedagógico, o diretor de turma, uma alegada testemunha, uma psicóloga contratada para o efeito e a própria rapariga da minha turma que havia sido vítima daquela atrocidade.

      Do alto dos meus dezasseis anos de idade, sentei-me na única cadeira disponível à volta daquela mesa redonda e notei em mim um estado de ansiedade que me apaixonava! A minha ansiedade não era alimentada apenas pela sensação de medo ou de injustiça, mas, acima de tudo, por uma excitação extrema ao ver ali tanta gente disponível para que eu pudesse pôr em prática aquilo que mais me fascinava. No fundo, eu estava entusiasmado com a ideia de ter de estudar e convencer todas aquelas pessoas acerca da minha inocência e tudo o que eu mais queria era que aquela negociação começasse!

      A acusação começou forte, primeiro com o diretor da escola a soletrar os valores da moral, da ética e do código de sanções que imperavam na escola. Em seguida, o diretor de turma perguntou-me por que motivo eu tinha escrito aquilo à pobre rapariga.

      A minha primeira reação foi racional e pedi-lhes para me mostrarem a carta insultuosa, pois eu não sabia do que estavam a falar. Os diretores continuaram agressivos com setas apontadas a mim e eu mantive-me calmamente fixado no meu pedido, argumentando apenas que gostaria de ler o conteúdo daquela carta. Com aquela minha insistência e inflexibilidade, eu estava a querer expor-me ao máximo perante a psicóloga, que era quem segurava a carta na mão e era também a única pessoa neutra no meio daquela gente toda.

      Perante a minha pacífica insistência, fez-se silêncio durante alguns segundos, e lá acederam ao meu pedido. Li aquela carta pela primeira vez em frente daquela gente toda, que me observava atentamente, à espera de algum sinal meu que me denunciasse.

      O conteúdo da carta era verdadeiramente nojento e repugnante, e aquela reunião tinha todo o sentido, exceto que o acusado não deveria ser eu! Quando levantei o olhar no final da leitura, já a minha primeira reação racional se tinha convertido num mundo de emoções. Os meus olhos, carregados de lágrimas de compaixão para com aquela pobre rapariga, fixaram-se frontalmente nela e lancei-lhe, sem hesitar, a pergunta mais frontal que podia: «achas mesmo que fui eu quem te escreveu isto?»

      A rapariga ficou tão contagiada pela profundidade emotiva do meu olhar e da minha simples pergunta que me declarou inocente sem hesitar! Pelo canto do olho, consegui observar a psicóloga que perante aquela minha «negociação» com a vítima, se mostrou irremediavelmente convencida. Perante aquilo, todos os outros ficaram despidos de argumentos e sem saberem o que fazer. Em seguida, já com a razão e as emoções de mãos dadas, passeei o meu olhar pelos diretores e num ápice passaram de acusadores severos a meros acusados. Ainda com as lágrimas a quererem escorrer-me pelo rosto, fiz questão de que provassem o sabor da injustiça que estavam ali a cometer, ainda que de forma respeitosa.

      No final do meu discurso moralista, olhei para a psicóloga, devolvi-lhe a carta e disse-lhe que no início da reunião haviam seis juízes e um acusado na sala e que no final da reunião passou a haver seis acusados e um juiz. Desejei a todos boa sorte no curso da investigação, levantei-me e saí da sala sem sequer esperar por qualquer pedido de desculpas. No final daquela reunião, cheguei a uma das conclusões mais simples e importantes da minha vida: qualquer momento implica uma negociação, seja ela interior ou com os outros, e o sucesso da negociação não se baseia apenas no resultado final, mas sobretudo nas conquistas que fazemos pelo caminho.

      Debrucei-me profundamente sobre aquele evento e inspirado em METIS, a deusa da astúcia e das habilidades, decifrei a fórmula que intuitivamente fui desenvolvendo ao longo do tempo e que tanto me viria a ajudar nas mais diversas interações humanas e espirituais.

      METIS = Motivação + Estratégia + Tática + Informação + Sedução, em que:

      Motivação = satisfação de necessidades;

      Estratégia = preenchimento e crescimento;

      Tática = essência humana, com poucos filtros;

      Informação = compreensão dos elementos e necessidades, muito para além do assunto em questão;

      Sedução = emoções verdadeiras e inteligência emocional.

      Com METIS, o objetivo principal nunca é apenas o êxito final, mas sim o preenchimento e satisfação durante todo o percurso. Resumindo simplisticamente, é como se um vendedor de gelados se preocupasse tanto em saber se o seu cliente é diabético como em vender-lhe um gelado.

      Adiante.

      No décimo primeiro ano de escolaridade, estava eu numa aula de não sei o quê, e eis que entra um funcionário da escola na sala a chamar pelo meu nome. Cá fora, encontrei a minha Mãe e a minha Irmã com o rosto devastado: morrera a avó Emília, que nos acompanhara por todo o lado. Eu era o menino dos olhos dela, aquele netinho a quem ela fritava batatas fritas redondas.

      Fiquei tão congelado que não derramei uma única lágrima! Eu, a criança e o adolescente mais emotivo das redondezas planetárias, reagi como se aquilo fosse um evento que ultrapassara o limite de qualquer dor. Foi o meu primeiro contacto com a morte e devo dizer que desde esse dia a minha existência neste planeta nunca mais foi a mesma. Não quero falar aqui das minhas crenças e experiências nesse campo, mas digamos que tenho uma relação muito especial com os que partem e que isso tem uma influência brutal na minha interação com os que cá continuam — incluindo eu mesmo. Com a partida da minha Avó materna, foi-se uma vida no seu corpo, mas entrou uma alma no meu mundo.

      Aos dezoito anos acabei a escolaridade obrigatória na escola profissional de Chaves e, em abono da verdade, nem sei como logrei chegar até ali. Fui fazendo a escola ao ritmo da desorganização e ao som da superação pessoal. Na verdade, bastava-me um mínimo de esforço para superar obstáculos e quando me via mais apertado, dedicava-me o suficiente para passar. Como não tinha adquirido bons métodos nem bons hábitos, passava a vida a correr atrás do prejuízo, mas nunca deixei que ele me tomasse de avanço.

      Supostamente, eu estava agora pronto para fazer o mesmo que a minha Irmã mais velha, ou seja, começar a trabalhar para ganhar a minha independência e ajudar a Família. No entanto, eu estava decidido a Escolher outro rumo e pedi à minha Mãe uma oportunidade para ingressar na universidade. Havia dois entraves: a situação financeira e o facto de ter frequentado a escola profissional, que não me dava preparação suficiente para encarar os exames nacionais de acesso à universidade — uma aberração do sistema de ensino português — sendo por isso necessário frequentar mais um ano preparatório numa outra escola da cidade. E assim fiz.

      Resumindo a minha juventude em poucas palavras, eu vivi uma rutura cruel com aquela saída abrupta do Alentejo, seguida de quatro trocas de escola em Chaves, entre os onze e os dezoito anos, sempre a deixar raízes para trás e a ter de recomeçar praticamente tudo de novo.

      Entretanto, numa conversa corriqueira com a minha Mãe, eu fiquei a saber que o meu nascimento não tinha sido planeado nem desejado! Uma importante descoberta aos dezoito anos.

      Antes da candidatura à universidade, a minha Mãe deu-me uns trocos para ir de férias com dois dos poucos Amigos especiais que havia feito em Chaves. Carregámos debaixo do braço uma tenda envolta num saco do lixo preto, vinho em garrafão de plástico e lá fomos a caminho de um festival de música de verão. Entre transportes e boleias, recordo a chegada à Póvoa do Varzim, num final de dia em que vi e ouvi o mar pela primeira vez em muitos anos. As minhas lágrimas da saudade e liberdade fundiram-se com o oceano e talvez eu estivesse também a chorar


Скачать книгу