Os Lusíadas. Luis de Camoes

Os Lusíadas - Luis de Camoes


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Rei, que ja ſabia a gente que era,

      Que Baco muito de antes o auiſara,

      Na forma doutro Mouro que tomàra.

      O recado que trazem he de amigos:

      Mas debaxo o veneno vem cuberto,

      Que os penſamentos erão de inimigos,

      Segundo foy o engano deſcuberto.

      O grandes & grauiſsimo perigos,

      O caminho de vida nunca certo:

      Que aonde a gente poem ſua eſperança,

      Tenha a vida tam pouca ſegurança.

      No mar tanta tormenta, & tanto dano,

      Tantas vezes a morte apercebida,

      Na terra, tanta guerra, tanto engano,

      Tanta neceſsidade auorrecida:

      Onde pode acolherſe hum fraco humano,

      Onde terà ſegura a curta vida?

      Que não ſe arme, & ſe indigne o Ceo ſereno.

      Contra hum bicho da terra tam pequeno.

      Fim.

      Canto Segundo

      Ia neſte tempo o lucido Planeta,

      Que as horas vay do dia diſtinguindo,

      Chegaua aa deſejada, & lenta Meta,

      A luz Celeſte aas gentes encobrindo:

      E da caſa maritima ſecreta,

      Lhe eſtaua o Deos Nocturno a porta abrĩdo:

      Quando as infidas gentes ſe chegárão

      Aas naos, que pouco auia que ancorarão

      Dantre elles hum que traz encomendado,

      O mortifero engano, aſsi dezia.

      Capitão valeroſo, que cortado

      Tens de Neptuno o reyno, & ſalſa via,

      O Rei que manda eſta Ilha, aluoraçado

      Da vinda tua tem tanta alegria,

      Que nam deſeja mais que agaſalharte,

      Verte, & do neceſſario reformarte.

      E porque eſtà em eſtremo deſejoſo

      De te ver, como couſa nomeada,

      Te roga que de nada receoſo,

      Entres a barra, tu com toda armada:

      E porque do caminho trabalhoſo,

      Traras a gente debil, & canſada,

      Diz que na terra podes reformala,

      Que a natureza obriga a deſejada,

      E ſe buſcando vas mercadoria,

      Que produze o aurifero Leuante,

      Canella, Crauo, ardente eſpeciaria,

      Ou Droga ſalutifera, & preſtante:

      Ou ſe queres luzente pedraria,

      O Rubí fino, o rigido Diamante:

      Daqui leuaras tudo tam ſobejo.

      Com que faças o fim a teu deſejo:

      Ao menſageiro o Capitão reſponde,

      As palauras do Rei agradecendo,

      E diz que porque o Sol no mar ſe eſconde,

      Não entra pera dentro obedecendo,

      Porem que como a luz mostrar por onde

      Va ſem perigo, a frota não temendo,

      Comprirà ſem receio ſeu mandado,

      Que a mais por tal ſenhor eſtà obrigado.

      Perguntalhe deſpois, ſe estão na terra

      Chriſtãos, como o Piloto lhe dezia,

      O menſageiro aſtuto que não erra,

      Lhe diz, que a mais da gẽte em Chriſto cria:

      Deſta ſorte do peito lhe desterra

      Toda a ſoſpeita, & cauta fantaſia:

      Por onde o Capitão ſeguramente,

      Se fia da infiel, & falſa gente.

      E de algũs que trazia condenados,

      Por culpas, & por feitos vergonhoſos

      Porque podeſſem ſer auenturados,

      Em caſos deſta ſorte duuidoſos.

      Manda dous mais ſagazes, enſaiados,

      Porque notem dos Mouros enganoſos,

      A Cidade, & poder, & porque vejão,

      Os que Chriſtãos, que ſo tanto ver deſejão.

      E por eſtes ao Rei preſentes manda,

      Porque a boa vontade que moſtraua,

      Tenha firme, ſegura, limpa, & branda,

      A qual bem ao contrario em tudo eſtaua.

      Ia a companhia perfida, enefanda

      Das naos ſe deſpedia, & o mar cortaua,

      Foram com geſtos ledos, & fingidos,

      Os dous da frota em terra recebidos.

      E deſpois que ao Rei apreſentàrão,

      Co recado os preſentes que trazião,

      A Cidade correrão, & notarão

      Muito menos daquillo que querião,

      Que os Mouros cauteloſos ſe guardarão

      De lhe moſtrarem tudo o que pedião.

      Que onde reina a malicia, eſtà o receio

      Que a faz imaginar no peito alheio.

      Mas aquelle que ſempre a mocidode

      Tem no roſto perpetua, & foy naſcido

      De duas mãis: que vrdia a falſidade,

      Por ver o nauegante deſtruydo:

      Eſtaua nũa caſa da Cidade,

      Com roſto humano, & habito fingido

      Moſtrandoſe Chriſtão, & fabricaua

      Hum altar ſumptuoſo que adoraua.

      Ali tinha em retrato affigurada

      Do alto & Sancto ſpirito a pintura,

      A candida Pombinha debuxada,

      Sobre a vnica Fenix virgem pura,

      A companhia ſancta eſtà pintada,

      Dos doze tam toruados na figura,

      Como os que, ſo das lingoas que cayrão,

      De fogo, varias lingoas referirão.

      Aqui os dous companheiros conduzidos,

      Onde com este engano Baco estaua

      Poem em terra os giolhos, & os ſentidos

      Naquelle Deos, que o mundo gouernaua

      Os cheiros excellentes produzidos,

      Na Panchaia odorifera queimaua

      O Thioneû, & aſsi por derradeiro

      O falſo Deos adora o verdadeiro.

      Aqui forão denoite agaſalhados,

      Com todo o bom, & honeſto tratamento

      Os dous Chriſtãos, nam vendo que enganado

      Os tinha o falſo, & ſancto fingimento:

      Mas


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