Nakba. Aníbal Alves

Nakba - Aníbal Alves


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que os pobres coitados se viram obrigados a abandonar tudo para se livrarem da tortura. Os poucos sobreviventes dos combates estavam por ali disseminados: feridos, debilitados, alguns estropiados e moribundos já. Os terroristas judeus do movimento Aganah tinham-nos deixado escapar para aumentar o seu sofrimento, depois de lhes roubarem todos os valores.

      O Exército de Salvação, única reminiscência do domínio britânico na Palestina, teimara em ficar como ajuda humanitária à hecatombe selvagem que se abatera sobre os indefesos palestinianos. Eram poucas as senhoras que se atreveram a ficar pelo amor cristão que residia nelas e foi graças à sua coragem que conseguiram aquele campo de refúgio improvisado logo no início da guerra dos 28 dias, que opôs Israel às forças árabes. Em virtude do afluxo de refugiados, as senhoras inglesas se viram obrigadas a apelar às bondosas monjas passionistas que, arregaçando as mangas e mandando às urtigas as diferenças de conceção religiosa, sujeitando-se assim a uma excomunhão da Romana Cúria, lá vieram em socorro da desgraça. Estas caridosas freiras acharam-se insuficientes também para ajudar aquela população de refugiados tão carentes de tudo e apelaram à Cruz Vermelha Internacional que, com a sua divisa benfazeja, não lhes virara as costas.

      No improvisado campo de aterragem de Sheila, em pleno deserto jordano, expectantes freiras passionistas e elementos do Exército de Salvação perscrutavam o céu azul sobre o reflexo salino do Mar Morto. O último texto via rádio tinha informado que um avião de carga Nord Atlas já estaria a sobrevoar a Palestina e trazia a bordo, além de um hospital de campanha apetrechado com tudo, ajuda sanitária e cinco médicos para valer aos feridos e dar assistência aos deslocados.

      Tinha sido a enfermeira Angélique da Ordem das Passionistas quem tinha recebido esta mensagem de socorro e a comunicara a todo o pessoal de enfermagem e auxiliar em serviço no campo. Foi a Sr.ª Sara Douglas, a responsável pelo pessoal colaborador no campo, quem convidou algumas das presentes para se deslocarem no seu jeep ao aeródromo, para assistirem à chegada do socorro prometido na mensagem. Angélique declinara o convite, porque havia já dezoito horas que estava ao serviço daqueles infelizes e necessitava urgentemente de algum repouso para aliviar a carga psicológica do esforço despendido. Embrulhada no hábito alvo da profissão e com o hejab da Ordem orlando e velando suas faces, não deixava transparecer o quanto a natureza pintara de belo em seu rosto. Quem tivesse a dita de a surpreender sem o véu da Ordem ficaria de certeza extasiado com aquela beleza meridional, nascida no Sul de França: os olhos vivos e sempre alegres eram de um tom castanho de mel, tão suave, que refletiam sempre a inocência de sua alma, e as linhas suaves que moldavam a sua boca de imediato faziam vislumbrar um arbusto vivaz com framboesas róseas ofertando-se. A magia da harmonia celestial estava inscrita naquelas pupilas virginais e traziam-nos o encanto da felicidade, onde tudo era quietude e paz na euritmia divina. A tez, sem uma única ruga ou embrulho, demonstrava a beleza de uma fonte cristalina, onde, no seu espelho, as musas recitavam poemas líricos. Tudo naquele rosto era idílico e ao mesmo tempo de ingénua inocência. Quem próximo dela tivesse a ousadia de dar um não ao seu apelo de ajuda, teria de ser dono de tal alma desumana que só um lobo por um osso. Ela tinha o condão de desarmar as más cataduras e tornar os corações duros em manteiga sobre torradas quentes. Mas — cautela! — aquele queixo lindo, com uma covinha enganadora e o nariz levemente arrebitado, não era de molde a deixar indiferente quem perturbasse a sua paz interior ou o seu querer, já o tinham experimentado algumas personagens de mau feitio. Angélique, como chefe das enfermeiras, era admirada pela competência e também o seu caráter de menina inocente e compassiva lhe tinha granjeado a fama de anjo bom. Muitos se interrogavam porque uma jovem com tais predicados de beleza e de índole pertencia a uma ordem católica de freiras. Ela não se coibia de dizer, com serenidade, que a dor sofrida pela morte do seu noivo na guerra lhe trouxera o amor pelos outros e essa tinha sido a janela onde vislumbrara este novo horizonte que a fazia feliz: cicatrizar a ferida do seu coração curando outras feridas.

      Logo após a ordenação ofereceu-se para servir num dos lugares mais perigosos do mundo. A Palestina foi o seu destino e aqui nesta terra, que diziam santa, milhares de seres desgraçados necessitavam da sua ajuda porque a divina era uma caricatura destes três deuses inventados que disputavam com exacerbada crueldade a hegemonia. O coração de Angélique não era só venerável, era enorme e sangrava! Sim, ali naquela terra estava também o lugar onde a bandeira do seu país fora humilhada pela canalha sionista. Foi numa das igrejas do Convento de Santo Estêvão, sob a proteção da flâmula tricolor, que os paramilitares da Aganah se apossaram do edifício em 27 de junho de 1948 para dar início ao roubo de tudo quanto tinha valor; profanaram as imagens sacras, os livros santificados, sacrários, crucifixos e fizeram da igreja um lugar de latrina, chegando, no paroxismo do ódio, a fazer as necessidades sobre uma estátua mutilada da Senhora Santa Virgem. Isto levou a que Sr. Neville, então Cônsul Geral de França, declarasse perante o grotesco espetáculo perpetrado pelos sionistas:«Estes vinte e oito dias de guerra e dezassete dias de tréguas ensinaram-me mais sobre o nazismo do que vinte anos de regime de Hitler.»

      Cabia à Sr.ª Sara Douglas, como chefe do pessoal auxiliar do campo, a ingrata tarefa de receber os passageiros daquele avião cargueiro enviado como socorro pela Cruz Vermelha Internacional. O primeiro encargo dessa missão era integrar aqueles colaboradores voluntários no real ambiente local, que era totalmente diferente do pós-guerra da Europa, onde as nações já se refaziam dos estragos causados pela loucura hitleriana. Ali era a Cisjordânia e as condições eram a carência total de tudo. Ora isso podia abortar as boas intenções humanitárias que traziam em seu coração, se a líder do Exército de Salvação não usasse o seu tato de mulher abnegada, cuja disponibilidade era ao serviço do espoliado povo palestino. Se necessário, faria apelo ao seu charme feminil para cativar aquela gente vinda de um mundo diferente, onde a democracia era um direito que começava a tomar forma, a par da justiça social. Estes voluntários desconheciam em absoluto a bestialidade com que atuavam as organizações secretas paramilitares judaicas que serviam de testa de ferro às forças regulares do exército de Israel. Essas fações tenebrosas praticavam sem o mínimo pudor o extermínio dos habitantes da Palestina e um só fito os guiava: a possessão total da Terra Prometida pelo seu terrível Deus, Jeová; demonstravam assim que a teocracia liderava o regime político do governo sionista.

      Como os recém-chegados estavam ainda imbuídos da mentirosa campanha judaica como coitadinhos e vítimas inocentes da hecatombe nazi, seria necessário algum tempo no terreno para entenderem o verdadeiro horror perpetrado pela insolência de um exército desrespeitador das mais elementares normas de humanidade, cujos comandantes cediam aos métodos hediondos de atuação das tais organizações terroristas que praticavam a limpeza étnica, fazendo destes oficiais cúmplices da imoralidade e transgressores do código de ética militar. Isto provava os comentários sigilosos de alguns intelectuais honestos que afirmavam: «O nosso Estado Judaico tem por base de formação o terrorismo e como tal, esse cancro nos marcará no futuro como vítimas!»

      A senhorita Douglas era filha de um coronel do exército colonial britânico na Palestina e tomara a peito a sua missão humanitária, dizia ela, para apagar algumas das injustiças cometidas pelo pai enquanto comandante militar de uma povoação. Tinha 22 anos quando se formou em Direito e, quando a Aganah perpetrou um ataque que tornou paraplégico um jovem tenente que era seu amigo, ela jurou vingança ao terrorismo sionista. Lady Sara, como era conhecida entre os palestinos, era uma mulher linda, seu olhar azul tinha a cerúlea tonalidade do céu daquela terra desejada pelo deus dos islâmicos, dos hebreus e dos cristãos e só não dos católicos porque estes inventaram um trio para si: o Pai, o Filho e o Espírito Santo,. Além desta divina comédia, foram os primeiros a implantar o terrorismo na Santa Terra Prometida que os judeus deificaram como a terra que mana leite e mel. As Cruzadas reclamadas às nobrezas europeias pelo papado romano para conquistar o Santo Sepulcro não passaram de invasões de alta pirataria brasonada para, em nome de Jesus Cristo, roubar, assassinar e estuprar mulheres e crianças indefesas. Estes crimes tinham ainda a benesse papal das indulgências que ofereciam o céu como uma graça divina àqueles cavaleiros mais esforçados, que morriam no combate e mesmo com o saque já tomado.

      Sara era uma jovem educada no austero sistema britânico, que sabia ser carinhosa e amável com todos, mas também dura para os prevaricadores. Seu sorriso era como uma janela aberta ao horizonte


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